PREMIAÇÃO NO CONCURSO MUNDIAL DE BRUXELAS
Situado a 410 km da capital, São Luís, Passagem Franca é um agradável rincão maranhense, tendo como municípios limítrofes São João dos Patos, Paraibano, Buriti Bravo, Lagoa do Mato e Colinas. Possui área de 1.358 km², contando com 17.562 habitantes, segundo o último censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, em 2015. Encravado nas chapadas do Alto Itapecuru, está a 214 metros de altitude, o que lhe confere um clima bastante ameno (à noite sopra um delicioso vento frio denominado pelos moradores de cruviana), que favorece a agropecuária, sua maior fonte de riqueza econômica.
Inicialmente o local reunia um punhado de moradores, ao longo do século XVIII. Em 8 de maio de 1835, sob a invocação do padroeiro, São Sebastião, o povoado foi transformado em freguesia, sendo esta elevada à categoria de Vila em 28 de junho de 1838, através da Lei Provincial nº 67. Finalmente, tornou-se município pelo Decreto nº 832, de 3 de junho de 1935. Segundo relatos orais, a denominação Passagem Franca se deve a uma antiga moradora, uma portuguesa conhecida como dona Franca, que tinha uma taberna que hospedava os viajantes.
Nas suas terras passava um rio, e próximo à taberna o rio é mais raso, favorecendo a passagem de boiadas que vinham de Pastos Bons em direção a Caxias e Teresina. Esse trecho do rio ficou conhecido como a passagem da velha Franca. Daí ficando a designação Passagem Franca, como é denominado o município. Um busto de dona Franca foi colocado na praça principal da cidade, marco histórico que enche de orgulho os moradores.
SEU ZITO 90 ANOS. PAI DE UMA CACAHAÇA DIFERENCIADA
Nesse aprazível lugar, seguindo a tradição da agropecuária, surgiu um canavial que deu origem a um antigo engenho de cana-de-açúcar, nas terras de propriedade de seu Chico Saraiva. Foi nesse local que começou a ser produzida uma cachaça de primeira qualidade, desde os fins do século XIX. Um dos moradores da fazenda, jovem trabalhador oriundo de uma família piauiense, com o passar do tempo se tornou proprietário das terras e do engenho, dando seu apelido, Zito, à cachaça Reserva do Zito.
Ele nasceu em Croatá do Rufino, localidade a 18 km do município de Picos, Piauí. Os pais dele, Pio Rufino da Silva e Teresa de Jesus dos Santos se casaram e seu Zito, que atende pelo nome de batismo como José Rufino da Silva, nasceu a 10 de abril de 1929. Seu Pio se mudou da sua terra natal e chegou em Passagem Franca no dia 2 de novembro de 1929, quando seu Zito contava com menos de sete meses de vida. Inicialmente a família morou nos fundos de um comércio, cujo proprietário era seu Roseno Almeida, casado com a irmã do dono das terras, Chico Saraiva.
Seu Zito se criou em Passagem Franca e se casou com dona Francisca Medeiros de Araújo, conhecida como dona Chiquita, que era natural do Rio Grande do Norte. Com ela teve cinco filhos, que lhes deram 14 netos. Começou a trabalhar como ajudante de pedreiro. Aos poucos, com o fruto do seu trabalho foi comprando uns pedaços da área do proprietário da fazenda onde sua família morava, até se tornar dono definitivo de 44, 94 hectares de terras, em 1960, juntamente com o grande canavial e o antigo alambique.
A partir dos 15 anos de idade seu Zito começou a trabalhar como funcionário no alambique, que produzia a cachaça consumida na região. Ao se tornar proprietário do engenho, batizou a aguardente como cachaça Reserva do Zito. “Começamos a fabricar a cachaça branca mesmo; depois fomos colocando ela nas dornas (barris) de madeira daqui da região, o pau d’arco (ipê), aí ela fica corada. Só do ano passado pra cá é que se começou a comprar e trabalhar com outra madeira, o carvalho, que vem de Minas Gerais”. Essa madeira, atualmente, é adquirida de uma empresa que importa o carvalho, a D & R Alambiques.
INVESTIMENTO EM TECNOLOGIA COLABORA PARA A EXCELÊNCIA DO PRODUTO
A história da cachaça Reserva do Zito veio evoluindo ao longo dos anos, e a empresa se tornou familiar. Seu Zito, aos 90 anos de idade, ainda dá conta do trabalho, mas entregou a administração da empresa aos filhos Geraldo e Daniel Silva, que estão imprimindo novo ritmo ao engenho, com inovações tecnológicas, inovação nos processos de gestão e expansão dos negócios. Seu Zito continuou usando a velha dorna do alambique original para armazenar a aguardente. Contudo, na pegada da inovação, no ano passado os filhos de Seu Zito resolveram reformar a dorna antiga, já que em Passagem Franca não existem especialistas no assunto.
SEU GERALDO SILVA E A DORNA DO “MILAGRE”
Após a limpeza da parte interna do barril, fizeram uma coivara com a queima da madeira pau d’arco e a fumaça daí advinda foi direcionada para a parte interna da dorna. Entre uma dose de cachaça Reserva do Zito e umas garfadas no tradicional Doce de Rapariga (feito a partir de mamão verde ralado, amêndoas de coco babaçu, rapadura e cravinho), para espantar os efeitos da cruviana, escutamos uma animada conversa na boca da noite em Passagem Franca: “Depois que fizemos a coivara na dorna nós achamos a fumaça cheirosa, fechamos a dorna nos fundos e na tampa e deixamos a fumaça abafada; depois de uns três dias colocamos a cachaça no recipiente, e após alguns meses nós abrimos a dorna e fomos provar a cachaça, sendo que o resultado foi maravilhoso, pois a cachaça absorveu o gosto da defumação. Foi assim que chegamos a essa descoberta, que foi acidental, mas de resultado excepcional”, explica seu Geraldo Silva, um dos filhos de seu Zito e que é um dos administradores da empresa que fabrica a cachaça.
A aguardente passagense participou, no ano passado, em julho, da Expo Cachaça, evento nacional realizado em Minas Gerais, tendo ótima aceitação junto ao público e aos especialistas. Neste ano aconteceu o registro da empresa no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA. Dessa forma, a Reserva do Zito obteve a certificação, obtendo a legalização para produzir, engarrafar (envazar) e comercializar o produto. Até hoje o alambique funciona com recursos próprios, sem ter ainda acesso a financiamento público, tanto municipal quanto estadual. A cachaça branca (prata) é comercializada em garrafas de 700 ml, as que são armazenadas em ipê e carvalho são acondicionadas em garrafas de 500 ml, sendo o produto também vendido a granel.
ALAMBIQUE GERA EMPREGO E RENDA NO MUNICÍPIO
A atual produção do alambique é de 60 mil litros por ano. A Reserva do Zito é uma cachaça diferenciada, os donos aproveitam o coração da cachaça. “Nós só produzimos a cachaça a partir do canavial existente na parte mais elevada da nossa propriedade. Temos uma parte do terreno que é molhada, o brejo, que não dá a cachaça com a mesma qualidade da parte seca, de cima, que é irrigada. Separamos a cachaça para envelhecer; aqui nós priorizamos a qualidade, não a quantidade”, explica Geraldo Silva, que conta com a ajuda de seu irmão, Daniel Silva, e de sua filha Hellen Silva, neta de seu Zito, na venda e na propaganda da cachaça.
Esse cuidado na produção da aguardente tem gerado bons frutos. Na semana passada a cachaça Reserva do Zito branca, a Prata, ganhou a medalha de ouro no mais conceituado concurso internacional de destilados, o maior do mundo (Concurso Mundial de Bruxelas 2019), que agrupou concorrentes de 59 países, num total de 1.770 produtos. O resultado do concurso, que é itinerante, saiu na última sexta-feira, 6 de setembro, e esta edição aconteceu na cidade de Lvliang, na China, reunindo os maiores sommeliers do planeta. A dedicação de seu Zito e o afeto com que a família dele se dedica à produção da cachaça premiada são elogiáveis.
Uma cachaça de primeira qualidade está muito além de ser mais uma bebida destilada, feita a partir da cana-de-açúcar e dotada de critérios necessários para uma chancela de qualidade, tais como conhecimento científico, higiene, tempo de apuro, controle de qualidade, volume alcoólico, madeira das dornas de armazenamento, o terroir. Coexistem, no produto, o tempero da tradição que se revela no ritual do preparo da aguardente, evidenciando o sabor da bebida marcada pelas nuances dos segredos que definem sua personalidade, que são percebidos delicadamente a partir de uma inebriante degustação. Nesse momento, que equivale ao de uma revelação, é possível resgatar uma memória afetiva que nos coloca diante de uma vivência sensorial íntima, envolvendo particulares experiências que atiçam o olhar, o olfato, o paladar.
Não se trata apenas de adubar um terreno e plantar um canavial para se chegar a uma cachaça com alma. Existem componentes que vão além do simplesmente visível, como se percebe numa dose da cachaça defumada em barril de ipê. Pura poesia! Seu Zito conversa com os pés de cana, toca na planta procurando escutar com os sentidos o que ela tem a lhe dizer. Esse ritual, aliado à sabedoria de dar início a um pé-de-cocho (que é o processo que aciona a fermentação da cachaça) de acordo com a lua certa traduzem alguns dos ingredientes que estão além do plano simplesmente físico. Esta é uma bebida elaborada com carinho, que une uma família que tem fé no que faz e que nos transmite com leveza uma indispensável dose de afetividade. Essa dádiva desperta em nós sensações plenas de significados, que nascem a partir de uma generosa degustação da inebriante cachaça Reserva do Zito.
Texto e Fotos: Paulo Melo Sousa
Foto abertura: Divulgação